Fim de jogo

Otorquata
10 min readMar 5, 2020

--

Otorquata

Quando o semeadordehistorias.com ainda existia, eu escrevi um texto que não cheguei a postar. Um texto foi um divisor de águas para minha escrita, e achei q este seria um ótimo primeiro texto para esta mídia que acabei de conhecer.

Queria contar uma história diferente, não é a história do poeta, do semeador, nem a próxima que ainda está por vir. Quero contar uma história em forma de um jogo de futebol.

Desde o início do jogo, vivo sendo aquilo que me criaram pra ser.

Anderson, atualmente 28 anos, negro, cabelos crespos, 1,74 de altura e magro.

O que sempre fui e o que eu via em mim sempre foram coisas completamente diferentes. Nasci evangélico, não me perguntaram se queria, mas também não me perguntaram muita coisa e isso aconteceu com todo mundo.

Uma educação conservadora e regrada, criou em mim um ideal de vida, uma necessidade de obter sucesso baseado na definição de sucesso que me deram, e que antes de mim deram aos meus pais e antes dos meus pais deram aos pais deles.

Óbvio que o mundo é um pouquinho diferente, a vida é neste jogo o goleiro. (Vocês pensaram mesmo que tinha esquecido da metáfora nossa de cada dia?)

A vida como goleiro toda vez que buscamos o gol, se torna nosso último impedimento, nossa última prova, nossa última barreira. Eu sempre fui o cara que chuta no meio e põem a culpa na grande habilidade do goleiro em ser goleiro. Como se fosse injusto ele ser bom naquilo que ele está ali para ser.

Ok, eu não cresci como o melhor jogador do time, mas o jogo foi equilibrado nos primeiros minutos. Eu ia na igreja, eu tentava respeitar todas as regras, eu queria que meus pais tivessem orgulho de mim, e a cada falta que eu cometia, eu era punido como toda criança é punida por seus pais, e eu era duplamente punido porque não consigo me lembrar quando foi que eu não me julguei por um erro, eu odiava errar mas eu era tão amante de tudo na vida que era impossível não ficar distraído do jogo e acabar deixando a bola passar por debaixo das minhas pernas.

O jogo que estava equilibrado, meus amigos, começou a ficar difícil, a vida fez seu primeiro gol em mim. Meu pai foi hospitalizado e eu sequer sabia que diacho tava acontecendo.

Claro que um gol não é um chute aleatório ele vem de uma jogada criada ou de uma falha do time que estava se defendendo. Vou lhes contar a jogada: Eu já me punia por cada imperfeição, cada dificuldade, por não ser um prodígio. Eu já assistia meus pais se enfrentando dentro de casa, física e verbalmente, e eu era o "Cirilo" na escola, o garoto preto, comparado aos outros era pobre e já tinha me apaixonado por uma garota anos luz de mim, pelo menos era assim que eu via. Bem assim se iniciou a jogada desastrosa, enquanto eu lutava pra ser o primeiro na escola, eu não conseguia fazer isso ser notado pelos meus pais, " olha pai ganhei uma lapiseira da tia Val, porque eu acertei todas as palavras do ditado" tapinha nas costas, " legal, agora vai pra casa que o pai tá ocupado", copo de cerveja, pedras de dominó e mais três amigos dele em volta da mesa onde ele estava sentado. "Olha mãe ganhei uma lapiseira da tia Val porque fui o único da sala que acertou todo o ditado", nem olhou, estava já com o uniforme do hospital onde ela trabalhava na limpeza, e como todos os dias, estava atrasada.( Acho que essa parte eu puxei dela)

A jogada era um desastre o time não estava em simetria, não existia entrosamento, nada em mim estava no lugar, a defesa tava toda aberta.

Acordei, fui até meu pai no boteco em que ele sustentava a casa e ele tava no chão espumando sangue pela boca. Enquanto todos estavam tentando socorrer ele depois que eu já tinha chamado minhas irmãs que iniciaram o alarde, eu não conseguia entender porque eu não cheguei antes e ajudei ele, eu não sabia o que ou quem tinha deixado ele ali daquele jeito, só sabia que se eu não tivesse virado pro outro lado e dormido um pouco mais, ou deixado de ver o desenho matinal na tv do meu quarto, eu teria chegado a tempo. Essa era a cabeça do garoto de 9 anos que encontrou o pai a tempo de ser socorrido do AVC.

Vamos pular um pouco pra não me estender tanto.

Pai no hospital, ninguém mais colocando o dinheiro que ele colocava na casa, minha escola particular foi pro brejo. Agora eu era o garoto no meio de uma diversidade de condições financeiras, de uma diversidade de origens e histórias, e também uma diversidade de credos, que se odiava por nunca defender a mãe das surras, por não ter salvo o próprio pai, por ser negro, e acima de tudo, por não ser um prodígio.

Pra encurtar a história da escola pública, minha educação religiosa me fez ingênuo para a malícia que garotos da minha idade tinham. Fui agredido, humilhado, e se não fosse um ótimo corredor e pela única vez na vida, lutador, teria sido estuprado, se bem que em outros episódios pode se dizer que houve também um estupro,( tirem as crianças da sala pra ler essa parte), afinal não é por quê não houve penetração que eu tenha consentido o resto, e o não consentimento configura o estupro.

Bem com a vida tendo maior tempo de posse de bola, e eu completamente perdido em campo, foi um gol atrás do outro, meu pai ia todo ano dirigindo pra Minas e eu admirava aquele ritual, sonhava em ir junto, no ano que ele me prometeu que eu ia, foi o ano do AVC, minha mãe se tornou uma pessoa absurdamente amarga e sem paciência, coisa que ela era com minhas irmãs mas nunca havia sido comigo. Minhas irmãs, após o AVC do meu pai, não tinham um irmão caçula, agora agiam como se tivessem um peso a mais, e nunca discordei disso, foi um peso ter uma criança que não ajudava em nada enquanto você jogava sua juventude fora tentando segurar as pontas que meu pai teve que soltar. Por isso minha escolha foi continuar tentando ser um prodígio e me calar de todas as formas que eu pudesse segurar meu peso sozinho pra não pesar ainda mais nos outros. A escola eu calei, a perseguição com os "amigos" da rua eu calei, meus medos eu calei, meus amores eu calei, minhas dúvidas eu calei, meus sonhos? Deixei pra amanhã porque hoje não ia dar tempo.

Chegamos aos 13 minutos do primeiro tempo, ops, chegamos aos 13 anos de vida...kkk

Meu primeiro gol, meu primeiro emprego. Meu segundo gol, eu finalmente era tecladista da igreja, o "pem pem", que minhas irmãs odiavam e achavam horrível, agora fazia pem pem no altar da igreja.

Eu era ajudante de marcineiro e tapeceiro. Ele nunca me pagou um real, mais uma vez ingênuo demais para a idade.

Vamos avançar mais, depois de continuar perdido mesmo fazendo alguns gols, eu estava de volta em casa aos 19.

Meu pai tinha um mercadinho, no lugar do boteco, eu passei três anos morando na igreja tocando teclado e vivendo mil e uma coisas boas e ruins, a vida de todo mundo andou, minhas irmãs formadas, uma delas casada, todo mundo na casa habilitado para dirigir, e eu?

Apenas de volta em casa com um sonho frustrado e uma namorada nova.

Cara ela me fazia sentir que eu era incrível, porque eu jamais achei que encontraria alguém pra mim, e eu desde criança sonhava em me casar, ser um marido que fosse o herói da esposa, que não tivesse vergonha de correr para os braços dela e reconhecer suas fraquezas, eu queria ser casado com uma grande amiga.

Um mês de namoro e ela me ligou num sábado de manhã dia dois de janeiro de 2010 e terminou comigo.

Agora sim.

Com 19 anos, um mês em casa, desempregado, solteiro, e com todo mundo numa boa fase da vida. Minha mãe dirigia, coisa que ela não fazia quando saí de casa.

Adivinha quem se tornou o peso novamente?

Eu tinha empatado o jogo, eu vivi meu sonho por 3 anos, foi gol atrás de gol, a vida empatou me levando de volta pra casa e virou o jogo com o término do meu namoro.

Eu não podia abaixar a cabeça eu estava destinado a ser um prodígio, eu precisava ser um.

Como eu não podia abaixar a cabeça eu passei a mentir pra mim mesmo e me calar novamente, só que agora eu calava pra mim também. Vivi amores confusos, relações profissionais abusivas, e uma pitada de ilusão dentro da igreja, fazendo daquele universo minha válvula de escape, vivendo uma vida dupla onde tava tudo bem mas na verdade não estava.

Três anos passou e quando eu pensei que o jogo iria virar, eu conheci alguém. Por esse alguém eu voltei a estudar, entrei na faculdade, voltei a trabalhar, e voltei a sonhar.

Vivi uma coisa avassaladora e descontrolada que me tomou de uma forma truculenta e sem freios.

Depois de mais de um ano noivo, e outros dois de namoro. Acabou. Entre idas e vindas respiramos ainda mais um aninho.

Nesse meio tempo eu acreditava que estava goleando, que estava que estava dominando o jogo, que a vitória era minha.

Quando parei pra respirar e olhar o placar eu estava perdendo de lavada, o jogo estava em ruínas, aonde foram esses gols, o que aconteceu?

Eu puxei melhor na memória, e eu tinha vivido a relação mais tóxica que jamais imaginei viver. Eu virei as costas pra toda minha família, eu me humilhei, agi como um cachorrinho fazendo todas as vontades de todos ao redor dela, eu me cancelei, eu não queria mais ser o prodígio por mim eu passei a buscar ser um prodígio por ela, eu me diminui, me puni, me desvalorizei por aprovação.

Eu fechei os olhos pra tudo isso e só olhei meus gols que não eram nada perto de todos os gols contra que realizei nos quatro anos que me relacionei dessa forma.

Ver aquele placar diante de mim me trouxe um por um cada gol que eu sofri, e me senti tão ruim e perdido que não sei quais palavras usar nesta parte da história para ilustrar.

O que houve depois disso que me fez escrever esse texto.

Eu tentei morrer, tentei me matar, tive inúmeras crises, e chorei, muito, como nunca antes em toda minha vida. No início eu me odiava pelo fim, me odiava por todas as escolhas q me trouxeram até aquele resultado, e como se quisesse me rebelar contra tudo e todos eu comecei a apagar do placar cada gol que marquei pois não me considerava merecedor.

Até aqui o jogo mais estranho de todos pois sofri gols que se quer estava consciente.

Não tive uma epifania, mesmo torcendo por uma com todas as minhas forças, não houve uma reviravolta.

Fui morar sozinho e permanecer existindo nessa nova jornada já que eu não ia ser o prodígio, não ia ser bom, eu podia ser péssimo sem ninguém assistindo a minha miséria.

Solteiro e destruído voltei como um cãozinho arrependido volta pro seu dono. Voltei. Voltei aos poucos a me relacionar com minha família. Pela primeira vez em 26 anos eu não estava apaixonadinho por ninguém, eu não precisava moldar meus planos às necessidades da igreja, de um possível amor, nem de nada eu estava livre, dono de mim e da minha casa e acima de tudo da minha vida.

Eu de jogador virei comissão técnica e diretoria.

Nunca tinha visto minha vida por essa ótica, nunca tinha me responsabilizado por cada chute horrível que dei, a culpa não era mais do goleiro, eu que chutei no meio. Eu que joguei um monte de gols fora. Mas dessa vez eu não estava sendo punido. Porque eu estava olhando e respirando, esperando, analisando. Eu aprendi o erro e não o cometi de novo.

Paah! Gol no ângulo

Ainda estava perdendo mas cada gol que eu tomava era uma lição nova, mudança de tática. Substituição, sai amigo tóxico e se não tiver amigo bom fica sem amigo. Sai vida tóxica entra um olhar de esperança. Os gols ainda doem, por que dor é dor e dói. Mas ensinam então não são mais assim.

Eu trabalho até dez da noite, e todos os dias minha mãe me espera pra tirar a moto da casa dela e vir pra minha casa, e ao perceber a beleza disso, eu me peguei chorando todo o trajeto, cheguei em casa sentei, peguei o celular e escrevi tudo isso. Porque eu queria dizer que quando olhei no relógio hoje, estava marcando 45 minutos de jogo, eu pensava que era do segundo tempo, que o jogo estava no fim e que eu não iria mais conseguir virar.

Gol. Empatei.

Final do primeiro tempo, olho pra trás e vejo que o que mudou o jogo não foi nada do que fiz, foi aos poucos perceber que eu não preciso me ou ir por tudo como nessa história que narrei, eu não preciso desistir a cada gol. Uma amiga minha me disse que a idade não tem nada relacionado com sucesso, que a gente pode ser formada em TI e querer ser aeromoça, e que não importa a idade dessa decisão, porquê quando você acha que o jogo acabou, na verdade é só o intervalo, respira descansa e se prepara.

Nós vamos virar esse jogo. Vai ficar tudo bem, você tem com você tudo que precisa pra mudar o jogo, só precisa olhar em volta. Eu tenho minha família, minha mãe, meu pai, minhas irmãs, meu sobrinho que me inspira alegria só de olhar pra uma foto dele, meus tios professores( e o marido da minha tia que não é professor mas é prosesdor profissional) que se não tivessem me contado tantas histórias eu seria uma pessoa totalmente diferente e com certeza não estaria escrevendo esse texto. E se eu não tivesse nada disso, eu teria a mim e isso basta.

Eu ainda derramo lágrimas a cada palavra digitada e pela primeira vez em 28 anos, eu não estou chorando por dor, nem por vergonha. Eu sinto que posso amar de novo, que posso sonhar de novo, e que tenho tudo que preciso pra construir um Anderson prodígio!

Estou pronto para o segundo tempo. Bola no centro do campo.

Vida, o jogo não acabou, e eu não vou parar de jogar!

--

--

Otorquata

Apaixonado , ouvinte de boas histórias e busco ter uma história também para contar!